Entre os políticos da esquerda ocidental – mesmo os partidos progressistas europeus – uma pequena, mas barulhenta minoria está proclamando suas ideias sobre a guerra na Ucrânia. Por meio de publicações e através de instituições ligadas à esquerda radical, bem como às áreas de influência dos Democratas estadunidenses e dos Verdes alemães, essas vozes não são uma minoria e sim uma maioria. Quem? Os defensores de armar Kiev.
Minha intenção aqui não é discutir os prós e os contras desse envio de armas e as suposições implícitas das forças sobre a história, o funcionamento da política internacional em um sistema anárquico de Estados e etc.. Também não pretendo responder ao porquê dos jovens de esquerda, ou dos Verdes que se consideram à esquerda, serem especialmente inclinados a essa posição. Basta que se diga que as razões disso vão além do domínio da posição pró-fornecimento de armas na mídia mais ampla ou do fato de que os partidos de centro esquerda mencionados acima estejam hoje no poder.
Em vez disso, é importante entender que a autodefesa ucraniana tem pontos em comum com fortes sentimentos de esquerda – uma perspectiva antiguerra e antifascista e o desejo de agir em solidariedade, internacionalmente, com os vulneráveis – e é por isso que deve ser entendido como uma causa “de esquerda” e também “liberal”. Neste ponto, no entanto, o objetivo deste artigo é ajudar a esclarecer as diferenças dentro da esquerda, explorando as contradições e inadequações fundamentais dos militantes que defendem a entrega de armas à Ucrânia da esquerda moderada à esquerda radical.
O direito à autodefesa
A posição a favor do fornecimento de armas pode ser resumida da seguinte forma: a Rússia invadiu a Ucrânia – não há dúvida quanto a isso – e isso viola o direito internacional. Existe o direito de autodefesa e a solidariedade internacional significa, portanto, apoiar a Ucrânia (ou pelo menos seu governo atual) no exercício desse direito.
Solidariedade, neste caso, não significa apenas uma vasta demanda de ajuda humanitária para refugiados, asilo para desertores de ambos os lados, apoio à resistência civil na Ucrânia e ao movimento antiguerra russo ou possivelmente aumentar a pressão doméstica por um cessar-fogo para prevenir a escalada da guerra sobre os civis ucranianos. Pelo contrário, há um sentido militar mais estrito.
Vladimir Putin é um nacionalista grão-russo e um “fascista völkisch” que negou publicamente o direito da Ucrânia de existir e que – conforme essa ideologia (apesar de interesses materiais de segurança, econômicos, geopolíticos, etc.) – impeliu uma guerra contra a Ucrânia. Segundo essa ideologia, ele está invadindo a Ucrânia por meio de uma “guerra de extermínio”. Muitos dizem explicitamente “assim como Adolf Hitler fez antes”, outros apenas sugerem. Hitler, porém, poderia ser parado apenas pela força das armas. Logo, o equivalente deveria acontecer agora.
De tudo isso se deduz imediatamente que se deve ser a favor da entrega de viaturas armadas, tanques de guerra e possivelmente aviões de combate, a favor do treinamento de forças ucranianas para usar todo esse equipamento fora e dentro do país – enfim, tudo o que é necessário para expulsar a Rússia (“os fascistas russos”) da Ucrânia. Muitos pensam: isso deve acontecer porque, caso contrário, o “mal” ainda seria recompensado por seus atos.
Há outros também – como o intelectual marxista ucraniano Volodymyr Ishchenko, o ucraniano e ativista pela paz Yurii Sheliazhenko, os 785.000 signatários do “Manifesto pela Paz” da política Sahra Wagenknecht do partido Die Linke e a feminista da segunda onda alemã Alice Schwarzer – que advertem sobre uma escalada em espiral na Ucrânia com mais crimes de guerra russos (como a destruição de suprimentos de energia e água) e com uma sangrenta guerra de desgaste, uma caminhada inconsciente em direção a uma terceira guerra mundial.
Os críticos da entrega de armas exigem que os governos ocidentais apoiem os esforços diplomáticos do secretário-geral da ONU, do Brasil, da China, da Espanha, etc., para um acordo de paz mediado internacionalmente. Por isso, são acusados de meramente sucumbir à propaganda de intimidação de Putin, querendo deixar a Ucrânia a sua própria sorte e forçá-la a se render, defendendo uma política de “apaziguamento” como Neville Chamberlain já fez com o Acordo de Munique de 1938, apenas encorajando Putin a continuar e possivelmente a invadir os Estados bálticos (embora, em contraste com a Ucrânia, eles façam parte da OTAN há muito tempo), assim como Hitler invadiu a Polônia em 1939, e assim por diante.
A partir daí, acumulam-se as acusações da classe dominante liberal levantadas hoje contra os críticos da atual direção da política alemã. Isto é, a queixa de serem “lumpenpacifistas” (como coloca o colunista liberal do Der Spiegel, Sascha Lobo), “pacifistas da subjugação inconsciente” (segundo o cientista político liberal Herfried Münkler), “quintas-colunas de Vladimir Putin” (afirma Alexander Graf Lambsdorff do austero-neoliberal Free Democratic Party – FDP) ou “embusteiros pacifistas” (Lobo novamente).
Ora, tais comparações esquemáticas e a-históricas caracterizam-se pela ignorância tanto do passado quanto do presente. Há um revisionismo histórico escondido por trás disso, pois relativiza o Holocausto e a “guerra de extermínio” da Alemanha no Oriente, que buscava assassinar sistematicamente pelo menos trinta milhões de pessoas, inclusive por meio da fome sistemática das cidades, para possibilitar a escravização da população local colonizada. Vozes de esquerda na Alemanha, que antes mantinham um olhar cauteloso sobre a “singularidade” da guerra de extermínio alemã e a “ruptura civilizacional em Auschwitz”, como o chamou o historiador teuto-israelense Dan Diner, hoje têm pouco a dizer sobre esse novo revisionismo histórico – ou até mesmo o endossam.
A demanda bélica da Ucrânia, apresentada com firmes convicções, raramente é pensada com vistas em um ponto final e justificada em termos da situação estratégico-militar concreta, o que torna uma vitória militar sem o envio direto de tropas da OTAN e um colapso de todo exército russo altamente improváveis, ou mesmo o fato de ter entrado em uma guerra de desgaste com mortes diárias de cerca de mil quilômetros quadrados ao redor de Bakhmut, uma lembrança assustadora de Verdun e dos “Green Fields of France”.
Além disso, aqueles que exigem o envio de armas para a Ucrânia geralmente nunca refletem possíveis consequências não intencionais de “suas próprias” ações. Efeitos que, no entanto, são reais demais e, dado o domínio da escalada da Rússia, eles são, em última análise, inevitavelmente incalculáveis, incluindo o uso de armas termobáricas, químicas e nucleares táticas russas na Ucrânia e uma Terceira Guerra Mundial nuclear além das fronteiras ucranianas.
Falência da concepção de esquerda do Estado
O que é particularmente impressionante agora, no entanto, é que aqueles que antes de 24 de fevereiro de 2022 ainda eram ativos em grupos de leitura socialista, onde liam Karl Marx, Nicos Poulantzas e Ellen Meiksins Wood, escreveram artigos e livros sobre questões da Teoria Materialista do Estado e focavam estritamente na política do movimento radical baseado em princípios gramscianos ou mesmo anarquistas, alertando contra qualquer participação governamental ou mesmo eleitoral – agora essas mesmas pessoas estão descobrindo repentinamente o Estado burguês-capitalista, como atualmente governado, como um veículo para sua política.
Não menos impressionante, na Alemanha, os velhos esquerdistas de tradição “antialemã” e pró-Israel, dentre todos que emergiram durante a Guerra do Golfo (1990-91) criticando o anti-imperialismo e a postura antiguerra da esquerda tradicional comunista e socialista estão agora, depois de anos, se refugiando em uma vida mais ou menos privada, na vanguarda das demandas da esquerda pelo envio de armas à Ucrânia.
É difícil não perceber a ironia de que aqueles que outrora lutaram contra os velhos movimentos de libertação nacional e o velho anti-imperialismo – argumentando que suas “guerras populares” eram brutais, nacionalistas e ofuscavam os antagonismos de classe – agora são especialmente apaixonados pela “guerra popular” dos “ucranianos”, simplesmente porque novamente os velhos fantasmas, o movimento pela paz e o velho anti-imperialismo, devem ser perseguidos.
Agora, alguém poderia pensar que aqueles da esquerda ocidental que argumentam dessa maneira, conforme esboçado no início deste artigo, organizariam a solidariedade internacional de uma maneira muito prática, tendo como pano de fundo seus pontos de referência teóricos e políticos específicos. Que eles, seguindo o modelo histórico das Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola ou do atual Batalhão Internacional da Liberdade em defesa das regiões autônomas curdas, vão para as trincheiras na frente de Bakhmut como voluntários internacionais. Ou que iniciariam uma campanha para arrecadar doações de outros companheiros de esquerda e simpatizantes, semelhante à campanha “armas para El Salvador” da esquerda radical durante a década de 1980.
Pelo menos alguém poderia pensar que eles usariam seu alcance jornalístico para recrutar participantes àquela luta, a qual o general Mark A. Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, o soldado estadunidense de mais alta patente, se referiu como “uma grande batalha de desgaste com baixas muito altas, especialmente do lado russo”, haja vista que pessoas pobres das partes mais remotas da Rússia estão sendo totalmente queimadas lá sem treinamento militar, somando-se aos cerca de trezentos mil mortos na guerra até agora.
Em vez disso, no entanto, a esquerda radical hoje exige a entrega de MRAPs, HARMs e Abrams, de “Gepard”, “Marder”, “Leopard 2” ou mesmo caças de combate do aparato militar, que eles uma vez já viram como um Estado capitalista e imperialista, um Estado sobre o qual eles têm influência zero. Ou eles basicamente aprovam esse discurso porque não apresentam nenhuma alternativa própria, permanecem calados sobre o discurso dominante ou até mesmo mudam seu ativismo para atacar as vozes críticas dentro da esquerda. Em tudo isso, eles geralmente se recusam a ver que a lógica da política ocidental na Ucrânia significa, em última análise, envolver também as tropas da OTAN devido ao desequilíbrio entre o efetivo ucraniano e o russo.
Logicamente, a Ucrânia não é a República Espanhola e nem Rojava. Não é uma revolução anarcocomunista se defendendo contra o fascismo ou um novo modelo democrático no Oriente Médio, mas um Estado completamente dependente militar e financeiramente do Ocidente. É um Estado – dificilmente menos autoritário e oligarca-capitalista que sua vizinha Rússia – onde os partidos socialistas de oposição e símbolos comunistas foram banidos como “pró-russos” mesmo antes do início da guerra.
Um Estado no qual, após a proibição da grande “Plataforma de Oposição Pela Vida” e onze outros partidos, o partido do oligarca e ex-presidente Petro Poroshenko é a única oposição remanescente. Uma região onde o Estado de emergência foi declarado antes mesmo do início da guerra, onde os direitos civis fundamentais foram suspensos e jovens de dezoito a sessenta anos aptos para o combate foram recrutados nas ruas e mais de dez mil desertores foram presos na fronteira e enviados de volta para a batalha.
É também um Estado em que uma brutal lei antissindical (de 17 de agosto de 2022) obriga os trabalhadores a negociar individualmente com seus patrões seus salários. Dada a taxa de desemprego de 24,5%, os salários caíram 27% em 2022. Enquanto isso, o governo está “negociando” com o Fundo Monetário Internacional (FMI) um “programa de ajuste estrutural” que forçará a Ucrânia a empreender privatizações gigantescas de grandes empresas estatais, cortes significativos nos gastos sociais, liberalização do comércio e medidas de desregulamentação do mercado.
A Ucrânia, disse a ministra ucraniana da economia Yulia Svyrydenko no final de 2022, estava se tornando um “modelo de economia aberta”, enquanto Oleksandr Pysaruk, CEO do Raiffeisen Bank Ukraine e ex-representante do FMI, se regozijou: “Espero que esta seja a terceira chance da Ucrânia. A primeira foi a Revolução Laranja de 2004 que infelizmente foi uma oportunidade perdida pelo Raiffeisen Bank. O Maidan (2014) não foi totalmente perdido, mas nunca tivemos uma reforma dessa magnitude na Ucrânia!”
Em coro com os imperialistas
Em suma, a comparação com a Espanha em 1936 ou Rojava em 2016 desaponta, ao menos do ponto de vista da esquerda; a não ser, é claro, que os diferentes grupos de esquerda defensores da entrega de armas compartilhem fundamentalmente a avaliação dos governos dos EUA e da Alemanha de que a guerra na Ucrânia é um “conflito de valores”, onde a Ucrânia está defendendo a “liberdade e a democracia” do “Ocidente” contra o “autoritarismo do Oriente”.
De qualquer maneira, quando a esquerda radical fala em autodefesa militar contra o ataque russo, seria coerente falar em montar brigadas internacionais para ajudar. No entanto, tais iniciativas não são encontradas nos países ocidentais. Por exemplo, da Alemanha, apenas neonazistas se juntaram às forças ucranianas. Tudo isso significa, mutuamente, que os radicais de esquerda, geralmente antissistêmicos, hoje simplesmente querem e apoiam exatamente o que os governantes estão fazendo e o que estão circulando na mídia como a opinião da maioria. Ou melhor, o que estão tentando impor, já que estão controlando apenas em parte.
Na Alemanha, por exemplo, antes do chanceler Olaf Scholz decidir fornecer tanques de batalha Leopard 2, a maioria ainda era contra, enquanto uma grande maioria de 64% a 23% também se opôs ao fornecimento de caças de combate, o que entrou em discussão imediatamente depois; uma maioria absoluta vê a entrega de armas da Alemanha como “participação ativa na guerra”; e uma maioria – que vem aumentando – de 58% concorda que “os esforços diplomáticos para acabar com esta guerra não foram longe o suficiente”, enquanto 30% os consideram “apropriados”.
É lógico que uma posição pode ser correta mesmo que esteja de acordo com a classe dominante e mesmo que contradiga a maioria da população. Apoiadores de esquerda que defendem a entrega de armas argumentam que, diante da guerra da Rússia, devemos, antes de tudo, ser solidários com a Ucrânia e defender sua soberania.
Talvez seja demais esperar que esses grupos de esquerda mostrem sua solidariedade com os trabalhadores ucranianos nesta situação de guerra excepcional, concentrando-se na campanha internacional dos sindicatos ucranianos contra as severas leis antissindicais. Ou esperar que eles defendam a soberania do Estado ucraniano levantando um escândalo sobre o programa de pilhagem em andamento do FMI e do capital internacional e lançando uma grande campanha para cancelar a dívida deste país e de grande parte de sua população que amarga na pobreza.
Tudo isso seria necessário – mas também poderia parecer para alguns como uma batalha imaginária ou mesmo ser interpretado como uma forma de sedição e derrotismo, minando a moral militar. Portanto, também há necessidade de respostas para a questão de como se solidarizar com as pessoas que atualmente são vítimas de uma guerra imposta pela Rússia.
Sobre isso, porém, é notável que esses grupos de esquerda digam solidariedade “com a Ucrânia” ou “com a resistência ucraniana”, mas entendem por isso o governo ucraniano que recebe armas dos Estados ocidentais e a liderança militar ucraniana que os utiliza. Além disso, essa esquerda aparentemente não consegue imaginar outra forma de solidariedade com a população civil ucraniana do que ter um Estado imperialista fornecendo armas para uma zona de guerra. Parece ser estranho para eles que outra forma de solidariedade seja impedir a escalada de uma guerra por procuração em andamento nas costas da população ucraniana, pressionar por um cessar-fogo, promover a resistência civil, encorajar a fuga de todas as pessoas desta guerra (incluindo todos os desertores) e ajudar o movimento antiguerra russo, etc.
Tudo isso revela até que ponto a lógica da força militar penetrou no pensamento dessa esquerda. Como prova disso, basta observar que, via de regra, aqueles que estão mais distantes do exército e das questões militar-estratégicas exibem uma disposição muito maior de encontrar soluções pela força, enquanto são os militares de alta patente que conhecem por experiência própria os limites de tal poder, como o chefe de Estado-Maior dos Estados Unidos Mark A. Milley ou os generais aposentados da Bundeswehr, como Harald Kujat, Erich Vad ou Helmut W. Ganser, livres de punições por desobediência, quem alertam contra a ilusão de uma solução militar na Ucrânia.
Entretanto, voltemos ao argumento de que há um direito de autodefesa do artigo 51 da Carta das Nações Unidas para os Estados (povos) que se tornam vítimas de guerras. No início da guerra, o político do Die Linke, Gregor Gysi, disse que isso envolvia uma obrigação moral de permitir que esses Estados fizessem valer esses direitos, ou seja, fornecendo-lhes armamentos. Segundo Gysi, não se pode por um lado reconhecer que tal direito existe, mas também negar ao agredido as armas para exercer esse direito. Então, em essência, disse ele, a entrega de armas é a coisa certa a se fazer. Apenas no caso da Alemanha não é, por responsabilidade histórica pela guerra alemã de extermínio no Oriente, que vinte e sete milhões de cidadãos soviéticos – ucranianos, bielorrussos, russos, etc. – pagaram com suas vidas, metade deles civis. Nenhum tanque alemão deveria ser implantado novamente para matar os ancestrais daqueles que foram mortos durante a Segunda Guerra Mundial.
Assim, no final, Gysi também ficou do lado da liderança do partido e se manifestou contra a entrega de armas de Berlim – mas apenas por causa dos crimes históricos da Alemanha. A lógica, porém, é clara: se um país é atacado, há uma obrigação moral de fornecer armas. A ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, e a maioria das opiniões publicadas também veem dessa forma.
Fica complicado e um pouco desagradável quando se percebe que, dentro dessa lógica, o governo alemão teria que entregar armas para a população iemenita se autodefender contra a guerra genocida de agressão da ditadura da Arábia Saudita. E armas para as populações curdas do norte da Síria e do norte do Iraque para que possam se defender da guerra contra o autocrata turco Recep Tayyip Erdogan.
No passado recente, eles poderiam até ter exigido o envio de armas para o Saara Ocidental (contra o Marrocos), os palestinos (contra Israel), para a Iugoslávia em 1999, para o Talibã no Afeganistão em 2002, para o Iraque em 2003 e para a Líbia em 2011. Hoje, a invasão saudita no Iêmen resultou em mais de 380.000 mortes, quatro milhões de refugiados e dezenove milhões de pessoas passando fome até o momento, segundo dados da ONU.
De acordo com a Human Rights Watch, “a Arábia Saudita e seus parceiros de coalizão […] estão bombardeando hospitais, creches e escolas” e são responsáveis por inúmeros “crimes de guerra”. A guerra de agressão turca contra as regiões autônomas curdas no Iraque e na Síria, por sua vez, deslocou mais de meio milhão de pessoas, ceifou dezenas de milhares de vidas, incluindo incontáveis civis, enquanto Erdogan bombardeou áreas residenciais curdas em seu próprio país, do jeito que um criminoso de guerra faria.
Orientados por valores?
Em vez de seguir seu automatismo moral, no entanto, o governo alemão não apenas encobre, como até mesmo apoia ativamente as guerras de invasão travadas por seu parceiro autocrático da OTAN, a Turquia, e os ditadores sauditas, outro aliado ocidental. Por exemplo, a ministra das Relações Exteriores alemã e partidária dos Verdes, Baerbock, viajou para a Turquia após o início da guerra e elogiou “nossa forte parceria germano-turca” e sua posição comum contra a Rússia; por sua vez, em setembro de 2022, o Ministério da Economia liderado por Robert Habeck, também dos Verdes, desafiou a proibição de exportação de armamentos para a ditadura saudita que havia sido emitida após o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi e aprovou a venda de munições e equipamento militares alemães no valor de 38,8 milhões de euros para os mesmos responsáveis por crimes de guerra, como o bombardeamento de alvos civis. Tudo isso aparentemente – como até o canal de notícias estatal alemão Tagesschau suspeitava – na “esperança de petróleo e hidrogênio”.
Contudo, os representantes do governo alemão não se sentem envergonhados em descrever suas ações como “política externa orientada por valores” no sentido de uma “ordem internacional baseada em regras” ou – como Baerbock recentemente disse durante a Conferência de Segurança de Munique 2023 – como “guiada pela pacífica ordem europeia, pela Carta das Nações Unidas e pelo direito internacional humanitário”.
Agora, sem dúvida, a maioria da esquerda que, alinhada com o governo alemão, defende o “direito de autodefesa” e a entrega de armas também denuncia essa hipocrisia e duplo padrão ocidental. Há um acordo sobre isso. No entanto, intelectualmente, eles não estão seguindo Egon Bahr, o arquiteto da política de apaziguamento dos anos 1970 chamada “Neue Ostpolitik” sob o então chanceler social-democrata Willy Brandt, que alertou a geração mais jovem em 2013: “A política internacional nunca é sobre democracia ou direitos humanos. Trata-se dos interesses dos Estados. Lembre-se disso, não importa o que digam na aula de história.”
Em vez disso, eles se posicionam – consciente ou inconscientemente – na perspectiva de que a política do governo é, decerto, moralmente distorcida e hipócrita, mas que uma “política externa orientada por valores” poderia existir em princípio, mesmo com este Estado capitalista, e isso é uma coisa boa e precisa apenas ser implementada de forma consistente e verossímil.
Todavia, isso significaria que os grupos políticos de esquerda são agora aqueles que, na prática, exigem do Estado, sobre o qual costumam ter pouca ou nenhuma influência e que rejeitam em teoria: “Entregar armas para (quase) todas as zonas de guerra deste mundo!” Porque na grande maioria das guerras no mundo há um agressor ou invasor (e não raramente são os Estados da OTAN ou seus aliados).
Indo além: porque ainda mais pessoas de esquerda são a favor de sanções do que a favor de entrega de armas — mesmo na direção partidária de Die Linke, esta é hoje a posição majoritária em relação à Rússia — e no futuro eles teriam que exigir sanções contra inúmeros Estados em polêmicas e manifestações, escrever isso em seus programas eleitorais e justificar os efeitos sobre as classes trabalhadoras de (quase) todos os países, bem como a intensificação dos confrontos internacionais e etc..
É claro que nenhum intelectual radical de esquerda ou político do Die Linke faria tudo isso, nem mesmo a classe política dos Verdes e outros liberais, que contam com “soluções militares” e sanções como meios normais de política externa. Mas, seria apenas lógico e consistente.
Respostas desagradáveis
No entanto, o fato dos grupos de esquerda que defendem a entrega de armas (e as sanções) não fazerem tudo isso não torna as coisas menos constrangedoras. Pelo contrário, surge a pergunta: por que eles pedem entrega de armas (e/ou sanções) em um lugar – como na Ucrânia – mas não em outro – por exemplo, no caso do Iêmen ou nas regiões curdas no norte da Síria e Iraque — embora isso seja a consequência lógica de seus próprios valores? Por que eles não escrevem longos editoriais e comentários sarcásticos, interrogam o governo no Bundestag, organizam comícios e eventos, até que finalmente sejam ouvidos, o Estado cede à pressão da esquerda e a justiça finalmente prevalece?
Só há duas respostas possíveis para esta pergunta: ou é o resultado de uma atitude racista intuitiva que considera os ucranianos cristãos brancos mais valiosos do que os muçulmanos não brancos. Esse certamente não é o caso – exceto talvez entre alguns “anti-alemães” associados a grupos de esquerda ou que um dia já foram. Ou é causa de sua própria política – pelo menos aquelas voltadas para fora (que hoje se sobrepõem a todo o resto) –, são um apêndice (determinado de várias maneiras) da classe dominante e de seu projeto. Ou seja, estão presos à política de um Estado outrora visto como capitalista e de uma esfera pública midiática burguesa que aprendemos a considerar um “aparelho ideológico”.
Ambas as respostas provavelmente deixarão extremamente desconfortáveis os partidários de esquerda da política predominante de entrega de armas.
Sobre os autores
é pesquisadora no Instituto de Análise Social Crítica da Fundação Rosa Luxemburgo, em Berlim.